O Pobre Menino Rico

Esse curtíssimo conto foi escrito para incentivo pessoal duma pessoa que soube trilhar os meus caminhos.

A vida não é vivida se não for aproveitada a cada segundo, se não for colhido cada sorriso, se não guardarmos no coração cada frase.

A pessoa em questão, não só me fez ainda mais sorridente, como também sorriu mais para que cada dificuldade, cada ocorrido se tornasse menos grave e assim, construindo ponte sobre os abismos e diminuindo a velocidade a cada curva.

Quando sonho contigo, acordo disposto. Agora quero quem sabe um dia acordar contigo.

Um grande beijo Andry.

‘Amor não vai faltar’

Eu chorei. Chorei e continuo a chorar.

Ainda não sei bem o certo o propósito de uma mudança repentina na minha vida que queria ter certeza, na época, correr muito bem.

Ainda lembro daquelas linhas todas preenchidas pela letra perfeitamente legível da professora da terceira série.

Cada contorno daquelas caprichadas frases, cada curva foi compenetrando vagarosamente o meu coração duma forma inesperada, nunca imaginada, jamais idealizada.

Naquele momento eu passava a entender que além de todo o conhecimento que eu possuía algo dentro de mim também era forte, e o oposto do conhecimento, era algo horrível.

Senti-me naquele momento uma pessoa cruel.

Eu era horripilante.

Era tudo que eu menos queria naquele momento. Ser transferida para uma outra instituição de ensino.

A começar pelos professores inexperientes que seriam meus companheiros de trabalhos. Eu, uma veterana riquíssima em conhecimento que já havia palestrado em diversas faculdades de níveis altíssimo no país, ser “missionária” duma infelicidade. Revoltei-me.

Os rostos novos daquelas crianças todas sentadas sobre as carteiras já gastas e esfoladas me fizeram pensar em desistir, pareciam tristes e desconsoladas, mas eu tinha a plena certeza que naquele momento, eu sim era a única proprietária da maior tristeza.

- Bom dia crianças.

- Bom dia. – Responderam em coro.

Mais uma vez me perguntei sobre o momento em que presenciava. Quarta série do ensino fundamental era o fundo do poço, pensava indignada.

- Muito bem, eu sou a professora Eunice e estou aqui porque a partir de hoje serei a professora de vocês.

Todas permaneceram em silencio, como se estivessem esperando alguém que lhe fizessem sorrir. Aquelas crianças precisavam sorrir. Eu não sabia faze-las sorrir. Eu não queria fazê-las sorrir.

Apresentei-me formalmente assim como fazia nas outras escolas com alunos de maior idade. Disse o que passaria a eles e o que pretendia para o futuro das suas vidas.

- Estou aqui para que um de vocês seja meu médico quando eu estiver bem velhinha. Alguém se habilita? – Me esforçava a ser legal contra minha própria lei.

Percebi que devagar àquelas crianças foram sentindo-se mais a vontade. Percebi que muito além da minha má vontade de estar ali, a dificuldade apareceria com mais intensidade.

Minha vida solitária fazia-me prisioneira de mim mesmo, como se a solidão me aprisionasse fisicamente, enjaulando meu lado sensível, fazendo-me endurecer sem uma gota de esperança.

Como era estranho para as pessoas que me conheciam. Uma professora de trinta e seis anos que morava sozinha numa casa enorme, protegida por alarmes escandalosos e muros altos com cacos cortantes. Sem algo com vida para lhe fazer companhia, nem mesmo um cachorro para sua dependência. Eu negava para todos, mas algumas noites eu chorava amargamente. Mas pensava ser muito feliz.

Tudo parecia correr razoavelmente bem. As crianças obtinham sim uma mente muito aberta para novas informações. A capacidade de aprendizado era impressionante. Apesar do barulho infernal que me recebiam todos os dias.

Meu método rígido e implicante faziam com que parte delas pegassem medo das minhas falsas juras de advertência por atos irresponsáveis e de mínima relevância diante das doutrinas da escola.

- Mariana, eu já lhe disse que não precisa levantar da sua carteira para apontar o lápis. Aponte e deixe no cantinho da carteira e no final da aula joga no lixo!

Eu sabia que as crianças não gostavam de mim, e de certa maneira me sentia cheia de orgulho por ser famosa, mesmo que a fama fosse causa para que minha orelha esquerda ficasse vermelha.

Aquela ira devido a transferência de instituição foi sendo trabalhada por mim e a cada dia eu me acostumava mais com o ambiente mal cuidado. Por muitas vezes eu me sentia mal, a consciência pesava por pensar tão negativo sobre tudo que meus olhos contemplavam naquele ambiente. As pessoas todas que trabalhavam junto a mim vestiam-se de forma inadequada diante dos alunos, não por descuido nem mesmo por gosto, mas sim por necessidade.

Pessoas como a professora Tereza algumas vezes dava aula de chinelo de dedo, totalmente contrário dos modelos da professora Carmem que se dizia minha melhor amiga na faculdade onde eu lecionava. Todos aqueles costumes e etiqueta que tínhamos na faculdade foram sendo ignorados um a um, dia a dia naquele novo emprego. De inicio pensei ser relaxo, falta de comportamento, mas logo depois aprendi o que significa a palavra humildade.

Era o final do primeiro bimestre. Alunos aplicados e completamente disciplinados faziam total importância para cada palavra que eu pronunciava. Talvez fosse exatamente por isso que o estado se encarregou de me transferir para aquela escola num lugar tão diferente do que eu me acostumara.

É claro que eu também não era tão cruel na extrema realidade, mas meu sistema rígido e a qualidade das minhas explicações faziam total diferença no fator aprendizado. Já havia ganhado seis certificados de reconhecimento diante dos melhores professores do país. Alunos de diversos tempos ainda rasgavam elogios para seus amigos, familiares e conhecidos sobre minhas aulas.

Apesar de saber ser merecedora, eu me esforçava ainda mais, lecionar era a minha paixão. Com tantas qualidades, parei no pior sistema aprendizado da cidade. Estava aí o motivo da minha revolta. Tanta qualidade de ensino para depositar em crianças de dez anos. Indignava-me.

Diante duma turma de quarenta e três crianças, foi a primeira vez na história daquela instituição em que todos os alunos da classe saíram com notas azuis. Ou melhor, quase a classe toda foi com notas altas. Diante daqueles alunos eis Diego, o único com notas vermelhas, cinco notas vermelhas ao total. Em todas as disciplinas. Enfureci.

Diego era o aluno mais quietinho da sala. Não se interessava pelos estudos, pelos trabalhos que diariamente era passado para casa. Seus cadernos quase todas as folhas já começados a escrever e abandonado logo na terceira ou quarta linha. Dormia quase todas as aulas.

É claro que eu como sua responsável já havia percebido tal comportamento, mas diante das minhas promessas no inicio das minhas aulas, quando me apresentei, disse que não toleraria indisciplinas e que se precisassem da minha ajuda quem não fizesse por merecer, jamais eu os ajudaria. Joguei sob as costas daquelas pequenas crianças, responsabilidades de adultos. Responsabilidades que algumas mães criticaram, mas se conformaram diante do meu juramento de resultados satisfatórios.

Eu era autoridade maior dentro da sala de aula e também dentro da sala dos professores. Todos se curvavam diante de mim das minhas decisões, algo que eu na época me alimentava. Exatamente por isso que em momento algum fui questionado sobre o Diego. Eu era amarga e somente por isso adorava a rejeição e logo depois todas aquelas pessoas que me rejeitava se curvando diante de mim. Eu tinha o poder dum justo, mas era injusta.

Diego indiscutivelmente era o garoto mais pobre da classe, e juntamente com a unanimidade na pobreza vivia sempre sozinho. Enquanto os amigos se deliciavam em companhia de seus coleguinhas, Diego sempre na companhia da solidão com ar de tristeza. Como alguém que perdeu o sentido da vida.

Era indiscutível o seu potencial em relação aos estudos. Para quem nunca fazia nada durante a aula, seu desempenho nas provas bimestrais era magníficas. Suas vermelhas eram sem duvidas mais admiradas que muitas azuis suadas.

Preferi ficar apenas na espera do seu pedido de socorro que com certeza um dia viria.

A cada dia que passava eu conseguia ser ainda mais severa, impondo leis que eu mesmo criava nas horas de fúrias, nem eu estava me reconhecendo. Mais exigente que um chefe mal falado, mais cruel que uma carcereiro competente.

O segundo semestre foi ainda mais rigoroso. Sem dar folga. Hoje eu aqui pensando comigo mesmo, tento decifrar o porque desse comportamento com crianças tão amáveis? Eu sei, elas poderiam conseguir notas boas também se eu fosse ali uma professora sorridente e sempre feliz, que conduzia as aulas com facilidade. Mas não, meu sistema era bruto, cruel e sem peso na consciência.

Porem Diego continuava o menino rebelde em seus estudos. Sem conversa, mas sem atenção, sem bagunça, porem sem interesse. Dormia sempre no inicio das aulas e volta e meia acordava com meus berros. Também, como seria alguém sem interesse que participasse duma manhã com quatro horas de aula num silencio total? O remédio era dormir.

Assim, o segundo bimestre chegou ao fim. Impecavelmente todos os alunos conseguiram as notas ainda mais altas que o bimestre anterior, sem exceção. Somente o desinteressado garoto pobre que não quis saber de estudar e repetiu seu desempenho desastroso. Me desesperei. Não de preocupação, e sim de raiva. Diego estragava meu sucesso absoluto dentro daquela pequena classe. Eu não gostava nada disso.

Na minha casa a solidão tomava conta. Uma musica vezes ou outra me ajudava com o stress do dia a dia, a novela interessante que passava durante a noite me fazia viajar num mundo de mentira, mas algo dentro de mim me fazia sofrer. Torturava-me, como se eu fosse a única a não sorrir duma piada quando todos se desmancham em gargalhadas. Parecia que eu estava ocupando o lugar de alguém que precisava ser feliz, já que eu não me esforçava e continuava a ver tudo negativamente. Enfim, eu vivia numa incógnita interna.

Eu não tinha vontade de conhecer um homem e viver uma paixão. Sentia desejos como todas as mulheres comuns. Deliciava-me sozinha imaginando cenas ferventes dentro de mim, mas admitia-se como uma fraqueza que logo superava. Nós seres humanos somos frágeis demais.

E assim prosseguia a saga da dona do mundo, apenas do meu mundo.

Foi então que tentei incorporar em mim a vontade de ser compreensiva com alguém que aparentemente não queria compreensão. Levando a serio, tinha Diego como meu inimigo número um. O único que sem esforço algum fazia meus nervos aflorarem. Uma pobre criança de dez anos. Humilde e definitivamente fracassada criança. Quem era eu? Isso é que me pergunto todos os dias.

- Diego. Chamei você aqui para conversarmos um assunto que vem me preocupando muito.

Ele apenas assentiu com a cabeça parecendo preocupado.

- O que esta acontecendo com você querido? Todos os alunos da sua classe estão com notas ótimas e pretendem melhorar ainda mais. Vejo que todas as crianças costumam brincarem juntas, e você sempre separada delas. Tem algum motivo?

É lógico que era a primeira vez em que fazia aquele ato. Nunca precisei fazer com que um aluno levasse sermão sob minha matéria, e se precisasse eu não os daria, pois nada é mais incomodo para uma professora que ter que fazer a vez dos pais. Mas eu estava me saindo muito bem. Me surpreendi naquele momento. Não esperava ter dom pra paciência, muito menos pra amparo.

- Nada professora. Estou bem.

Insisti para que ele me dissesse algo mais complexo, mas nada o fez dizer. Foi naquele dia que percebi o garoto tímido e triste que Diego era. Senti-me incompetente por demorar meio ano para descobrir a verdade sobre um aluno.

Procurei então a direção da escola para entrar em contato com o responsável de Diego e marcar uma reunião com certa urgência e explicar tal comportamento. Assim foi feito, mas não cumprido.

Rosangela, madrasta do garoto não apareceu na reunião da quinta-feira que havíamos marcado. Pela primeira vez, verdadeiramente me preocupei. Percebi falta de interesse não somente do aluno, mas sim principalmente da família.

Durante as noites eu já não mais relaxava como antes. Na minha conturbada mente comecei a tentativa de adivinhar como foi que Diego chegou até a quarta série, ou, quem foi que o fez passar de ano. Não havia explicação alguma para o sucesso de ultrapassar por três series sem repetir em nenhuma sequer, mesmo que fosse as primeiras da vida dum aluno.

Eu já não tinha mais a cabeça vazia como antigamente. No silencio da minha casa enquanto me ensaboava no banheiro, ficava a lembrar todas aquelas tarefas não feitas por Diego, e, a cabeça baixa quando eu o advertia. Nenhuma resposta sequer, apenas o girar da cabeça para um lado e outro quando negava tal coisa, e assentia quando concordava.

Outros alunos já nem fingia desprezo, mas ele ali, em todas as aulas. Sem uma falta sequer. Sempre calado.

Como eu havia prometido no inicio do segundo bimestre, se as notas fossem melhores que o primeiro, inventariamos algo como um amigo secreto fora de época. Todos gostaram da idéia. Assim foi combinado.

Da professora severa que era, fui me tornando mais doce e sensível diante daquelas crianças. Ao contrario de outras épocas, comecei a me preocupar profundamente com todos. Estava numa fase de mudanças, mas não sabia.

O Diego já não merecia mais castigos e broncas como pensava antes. Agora na minha cabeça ele merecia atenção, amor, carinho. Mas intuição pura, pois devido a falta de tempo, ainda não tivera a oportunidade de verificar seu boletins dos anos anteriores. E assim foi passando.

Eu procurava incorporar mais aquele pequeno e calado garoto junto aos outros coleguinhas. Durante as aulas eu o chamava pelo nome e fazia responder uma ou outra pergunta sobre a matéria. Sempre distraído e inquieto pensava um pouco para responder, mas nunca errava. Eu fingia tranqüilidade e felicidade em suas respostas certeiras, e por dentro profundamente admirada com tamanha inteligência. Pois eu sei, ali em pé falando muito conseguia enxergar quem prestava atenção em minhas explicações. Mas nunca em momento algum Diego fixava os olhos em mim para acompanhar qualquer explicação que fosse, e qualquer pergunta, lá estava a resposta na ponta da língua. Ninguém percebia, mas era fabuloso.

O dia do amigo secreto fora de época chegou. No dia anterior pedi para a inspetora que me mostrasse todas as fixas cadastrais e históricos dos alunos da quarta séries. Rapidamente encontrei do garoto que estava vagarosamente me tirando o sono.

Sem tempo, abri a maquina de xérox e copiei todos os seus boletins anteriores, juntamente com as anotações que as professoras faziam sobre o desempenho individual de cada aluno.

Guardei na pasta e saí, ansiosa para poder conferir o mistério do sucesso dum garoto que nada fazia, mas em tudo respondia. Sem perceber agora posso dizer. Minha vida estava ficando cada vez mais importante. Diego era um adorável desafio para mim.

Cheguei em casa no fim da tarde com o coração na boca na ânsia do relato de suas antigas professoras. Estacionei o carro na garagem e após entrar no quarto, abri a pasta preta com certo afobamento, onde havia posto as informações e assim comecei a ler:

Resumo 1 Série

“Diego é um garoto maravilhoso e se destaca diante da turma com sua facilidade para aprender. Aplicado e determinado já comentou comigo que sonha um dia em ganhar muito dinheiro e ir morar num lugar muito bonito com sua mãe, onde ao menos não tenha ratos.

Diego é muito amoroso e carente. Acredito muito nesse menino. Espero que um dia ele se torne uma pessoa muito importante e que alcance tudo que sempre sonhar.

Professora Marli.”

As notas de Diego da primeira série eram maravilhosas. Todas as matérias com nota máxima sem exceção. Até ali eu continuava sem a resposta que eu queria. O motivo de tantas falhas na educação escolar daquele menino. Sim, eu sabia que sua família não era das melhores, e que essa razão pode ser uma desculpa muito bem aceita diante da vista de muitos. Principalmente professores e educadores.

Assim, ansiosa continuei a ler.

Resumo 2 série

“A professora Marli do primeiro ano já havia comentado sobre esse aluno. O encheu de elogios e disse que sem sombra de duvidas foi o melhor aluno que teve durante o ano todo. Fiquei feliz em saber que Diego seria meu aluno. Mas durante o ano Diego teve muitas dificuldades. Sua mãe é vitima duma doença muito grave e há algum tempo permanece hospitalizada. Diego todos os dias pedia para que eu convocasse a classe para rezar em prol da sua mãe. Suas notas ainda assim permaneceram ótimas, porém a tristeza era mesmo muito visível no seu comportamento. Com mérito Diego ainda conseguiu ficar dentre os melhores alunos da classe.

Continuo a rezar por sua mãe, e que logo ela se recupere.

Professora Ana Lúcia.”

Senti um calafrio dos pés a cabeça. Sem querer me culpar, me senti uma verdadeira alma desinteressada ao próximo. No relato a palavra doença. Lembrei do quanto sofri com meu passado.

Ansiosa, folheei o relatório com o desespero na garganta.

Resumo 3 série

“Gostaria de não ser eu nesse momento. Relatar mau comportamento e indisciplina do Diego seria um absurdo se alguém previsse anteriormente.

Apesar do estado de saúde péssimo da sua mãe, procurei sempre estar perto do garoto e convencer sua cabecinha da tamanha capacidade que ele tem (que não é nenhuma mentira), porém fiquei sem palavras após a morte da sua mãe na metade desse ano. O câncer tirou a vida duma mãe amada. Diego tornou-se outro menino. É compreensível.

Chorei como se tivesse perdido um filho. Minha alma ainda chora e pede ajuda ao Deus para socorrer Diego, pois a mãe era a única fonte de carinho que tinha.

Diego passou de ano.

Apesar da idade a vida já lhe deu algumas rasteiras.

Diego quer ser médico, para salvar vidas. Foi assim que disse quando perguntamos quais as profissões que pretendiam seguir.

- Quero ser médico para salvar pessoas doentes assim como minha mãe era!

Diego a cada dia me ensinou a viver.

Professora Ida.

Ao terminar a leitura, dos meus olhos jorravam lágrimas. Peguei-me diante de mim mesmo com o coração perto da boca meditando nas palavras das professoras anteriores. Envergonhei-me novamente. Motivo eu tinha de sobra.

Na minha cabeça nesse momento passava um filme da imaginação frutífera que me ocorria. O tamanho do sofrimento que uma criança tão frágil passou e ainda estava a passar. Como eu me sentia boba. Como naquele momento eu só sabia chorar.

Na sala de aula eu já o enxergava com outros olhos. Já sentia a tristeza como ele próprio sentia. Já o ensinava com mais carinho e dedicação. Já não o corrigia como antes. Já tolerava seus breves cochilos durante a aula.

No dia do amigo secreto fora de época fiquei a pensar o que seria de Diego. Por mais que fosse algo baratinho que fazíamos, ele não teria condição alguma de comprar qualquer coisa que fosse. Menino pobre, de favela imunda e perigosa. Local onde as pessoas davam o suor que tinha para por o que comer na mesa. Um verdadeiro local esquecido pelo governo.

Na revelação e entrega dos presentes fiquei na espera de Diego anunciar quem o tirou no pedaço de papel dobrado.

- Professora Dayse! – Anunciou timidamente estendendo aquele embrulho.

Naquele momento, todos os alunos da classe perversamente começaram a rir. Diego então ‘encolheu-se em seu próprio casulo’.

Enrolado num jornal desembrulhei seu humilde presente. Uma corrente com brilhantes de vidro faltando algumas pedrinhas, e um frasco de perfume pela metade. Naquele momento esqueci o equilíbrio, esqueci os risos. Chorei. Chorei copiosamente para o espanto de todos. Diego então retrai-se ainda mais. Estendi os braços para lhe dar um abraço. Naquele momento eu tremia. Meu coração batia forte no peito. Minha voz custou a sair.

- Diego querido! Obrigado pelo presente. – Recuperei pouco mais a pose. – É o melhor presente que já ganhei em toda a minha vida.

Todos os olhares curvaram-se a mim naquele dia. Lembro-me como hoje.

Foi assim que aprendi a viver. Foi aí que minha vida começou verdadeiramente.

Aquele dia considero-o como o mais importante da minha vida. Um divisor de águas. Diego prometeu se dedicar. E cumpriu. Ficou entre os melhores da classe.

Na minha vida também me comprometi a me dedicar mais com qualquer aluno que fosse.

Os anos passaram. Três anos depois recebi uma visita de Diego numa faculdade onde eu lecionava. Disse-me abertamente que sentia saudades e que eu havia sido sua melhor professora até ali.

Mais alguns anos, recebi uma carta dizendo que havia ganhado uma bolsa de estudos na faculdade federal.

Cinco anos depois uma nova carta. Diego me convidava para sua formatura.

‘Querida professora.

Venho através desse convite exigir a sua presença na minha formatura.

Hoje me sinto um verdadeiro herói, e você professora Dayse a minha inspiração.’

Pela minha cabeça passou toda a incrível história do meu inesquecível aluno pobre, que fez de mim um ser humano capaz de amar.

Na última linha daquela carta ele dizia.

”..professora Dayse, eu te amo”.

Respondia em voz alta e emocionada.

- Também te amo, querido!

De tantas formaturas já protagonizadas, aquela eu era apenas uma convidada, mas sabia que anonimamente era minha maior participação na vida dum aluno.

Além de ensinar, eu aprendi. Foi minha maior conquista com toda a certeza.

Doutor Diego, era assim que deveríamos chamá-lo agora.

Os anos não esperam e a velhice chegou. As dores naturais causadas pelo tempo foram se aproximando.

Um terrível diagnóstico acusou um grave problema no meu coração, que antes duro, e depois da humilde escola dum bairro pobre, totalmente mole.

Meu coração ficou mais fraco depois da morte do meu marido.

Fui encaminhada para uma clínica especializada para tratar-me com o melhor medico do hospital.

Minha esperança era minúscula. Apenas me preparava para morrer.

O hospital era luxuoso e muito caro. Onde existem os melhores médicos do país.

Minhas pernas ficaram trêmulas como uma vara ainda verde. Na sala de espera, uma voz suave e muito firme ecoou, vi um braço com as mão estendida para mim.

- Boa tarde dona Dayse.

- Boa tarde! – Respondi ainda com a cabeça baixa, com certa dificuldade para movimentar-me devido a invalidez.

- Eu sou o cardiologista Diego Torsonto e vou cuidar da senhora.

Quase meu fraco coração para de vez, mas sorri.

Diego me abraçou apertado, e disse com a voz embargada.

- Professora! Lembra no seu primeiro dia de aula, na quarta-série quando intimou à classe toda dizendo que queria um medico para cuidar de você quando ficasse velhinha?

Assenti com a cabeça e as lágrimas riscando o rosto.

- Eu não disse em voz alta, mas aceitei o desafio no meu coração. – Limpou o rosto molhando com as pontas do dedo indicador e continuou.

- Professora, eu lhe garanto, do coração a senhora não morre.

Fim

Postagens mais recentes Postagens mais antigas Página inicial